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Meu pai

21 maio
Essa historinha eu escrevi pra levar de presente pro meu pai num Moleskine pequinininho com uns desenhinhos pra ilustrar. Não tirei fotos das figuras. Minha tia, que faleceu faz pouco, tinha me pedido pra escrever uma composição sobre meu pai, já que eu já tinha escrito uma pra minha mãe. Acho que não tem muita graça se você não conhecer meu pai e as manias, as coisinhas que ele faz e as muitas expressões que ele usa. Mas vá lá.

 

Meu Pai

Um Pequeno Tratado de Biologia

O Corpo Humano


Introdução. O corpo humano do meu velho pai é pequeno. É de se espantar que dentro dele caibam tantas coisas. Quando eu era pequena, eu achava que era muito grande, mas agora nossos corpos humanos são mais ou menos do mesmo tamanho, sendo que o dele encolheu um pouco e o meu alargou bastante. Eu conheço o corpo humano do meu pai desde que nasci. Ele só conheceu o meu quando tinha 43 anos. É muito tempo pra não se conhecer alguém. Dá até uma saudade dele de antes de eu existir. Os nossos corpos humanos habitam este mundo juntamente há quase 32 anos. Esse é um pequeno estudo científico sobre o corpo humano do meu pai.

1. A residência do corpo humano do meu pai. Meu pai mora num mundo que saiu de um livro de histórias. Um mundo velho e que não tem porteira, onde mora o amigo dele, Senhor dos Passos, que tem uma mula peidorreira. Ela às vezes peida n’água pra soltar borbulha. Também tem o amigo Gersinho, que, coitado, depois de uns 20 anos ainda não descobriu que eu não sou uma menina biônica. O corpo humano do meu pai poderia morar em outros lugares, mas não é adaptado aos climas frios.

2. A boca. Meu pai não sabe cantar afinado. A única música que ela acerta é Samariquinha Maroquinha. A boca do meu pai tem um sabiá que mora dentro dela e que sopra em assobio as canções mais lindas. Esse passarinho também ensinou meu pai a fazer biquinho, especialmente quando ele toma café em xicrinhas bem pequenas. O biquinho do meu pai também pode ser utilizado para dar beijinhos. E como o passarinho que assobia ocupa muito espaço, meu pai não consegue engolir comprimidos sem jogar a cabeça pra trás como se fosse dar gargalhadas. Às vezes a boca dele fica suja, como por exemplo quando ele conta piadas.

3. O pulmão. O ar que tinha dentro dele um dia foi pra dentro de um bezerrinho acabado de nascer, no curral. Meu pai soprava na boca dele e acho que eu tinha as mãozinhas no peito, apertando. Meu pai deixou dar um nome pra ele: Beto. Depois ele virou um boizão.

4. A língua. Serve para falar em línguas, como na Bíblia. Meu pai sabe falar, além de português, a língua dos cavalos. Primeiro ele oferece a mão, depois anda devagarinho e daí o passarinho da boca dele assobia um vocabulário todo novo. Meu também sabe falar com jumentos e vacas. Ultimamente, ele também entende a nossa Cuca. Noé ficaria muito feliz em conhecer meu pai.

5. A cabeça. O meu pai tem a cabecinha muito boa e guarda muitas histórias, mas às vezes, acho que ele confunde onde as pernas (de mulher) ficam, porque ele dorme de meia-calça na cabeça. Diz que é para o cabelo obedecer melhor o pente. Para a boa manutenção das funções cabeçais, meu pai precisa de tuqui-tuquis aplicados no mínimo semanalmente. Ele trabalha muito a cabeça dele e exige que todos façamos o mesmo.

6. As costas. Servem de cavalinho para netinhas — somente as humanas, e não as caninas. As costas do meu pai estão sempre muito estressadas. Elas sempre precisam de um relax.

7. Os órgãos reprodutores. Apesar do meu pai não possuir órgãos reprodutores, porque pai e mãe da gente não praticam o intercurso sob pena de traumatizar as crianças, ele conseguiu se reproduzir. O corpo humano do meu pai misturou um pouco com o corpo humano da minha mãe, que é uma mulher nipo-brasileira moderna do século XXI, e assim, eles tiveram filhotes e minhocas. Eu tenho que agradecer os órgãos reprodutores do meu pai e da minha mãe porque eles fizeram, juntos, os melhores irmãos, os mais docinhos.

8. A barriga. Meu pai não é cuspidor de fogo, mas houve um tempo em que ele engolia carros, especialmente no período noturno. Acho que por isso mesmo a barriga dele é um pouco redonda pra frente. Os principais alimentos que ele gosta de manter dentro da barriga são arroz queimado, salada murcha e pé de galinha. A barriga do meu pai não orna com strogonoff.

9. Os pés. Tiveram bicho quando ele era pequeno. Eles gostam de botinas e recusam a liberdade de chinelos ou do par de sandálias que eu dei pra ele no Natal de 2003. Chutam a gol quando a gente assiste a jogos do São Paulo na tevê e o artilheiro é muito pé frio ou está de salto alto.

10. Os olhos. Fecham bem pesados no meio da novela das 8. É sinal de que ele tem que dormir de imediato.

Epílogo. A melhor coisa do corpo humano do meu pai é quando ele abraça meu corpo humano.

Minha mãe

24 nov
Minha mãe ficou de barriga de mim quando já fazia tempo que ela achava que tinha fechado a fábrica e parado todas as máquinas. Acho que ela já tinha desistido de me ter — isso antes de me esperar — mas depois ela me salvou, porque sabia sobre mim e sobre o escuro da barriga redonda e cheia melhor que o Dr. Alcides, o ajudante da luz a quem minha mãe me deu (mas só um pouquinho, depois ela me pegou de volta).

A luz me pegou nos braços e colocou um gorrinho cobrindo o cabelinho preto, também escuro como dentro da barriga da minha mãe. O gorrinho era pra não assustar os meninos em casa. Se eles ficaram com medo do nenê na sacolinha, eu não sei, mas quando meu cabelo ficou grande de novo, os meninos até gostaram de mim. Aí ela tirou o gorrinho e todo mundo me achou o joelho mas bonito do mundo, o joelho menos joelho que existia. E ela me deu um beijinho; meu pai também. E depois os meninos, com cuidado. Essa parte eu tive que inventar, porque eu estava lá, mas não me lembro.

Bem cedo ela me punha meias brancas até o joelho, sainha plissada e tênis de couro que fervia o pé. Ficava acenando tchau no portão. Ela sorria contente. Às vezes, chorava também. “Que menininha tão bonitinha que eu fiz,” ela pensava. “Eu e o Olo.” Ela não pensava a mesma coisa sobre os meus irmãos porque eles já eram grandes.

Um dia, ela foi aprender a dirigir. Nunca aprendeu. Nem com almofada pra tentar enxergar bem ali na frente do pára-brisa do fusquinha. Eu dormia até ela voltar, porque tempo dormido é mais curto que tempo acordado e aceso. Ela chegava e se deitava comigo, as duas de barriga pra cima. “Fecha os olhos”, ela dizia, e contava a história da vaquinha que chupava o dedo. Quando as aulas de direção terminaram, ela me levou pra passear de carro com ela. Foi a primeira aventura que a gente viveu juntas.

Um tempo depois, ela ficou a pessoa mais triste, porque meu pai ia pra cá e pra lá, e eu ia pra lá e pra cá bem colada com ele, e ela não se conformava: tanto brigadeiro enrolado pra festinha no primário, tanto aconchego na toalha amarela felpuda com orelhinhas, não pode ser assim… Mas eu voltava sempre, então ela se esquecia da ingratidão. Nessa época, eu não conhecia essa palavra, nem sabia o que era isso. Acho que eu só sabia ler umas palavras assim:

ioiô iaiá via Vivi

Antes que alguém me pergunte, já digo logo que eu gosto da minha mãe e do meu pai bem igual e grande, mas é que agora a composição é sobre a minha mãe.

Minha mãe canta mais bonito que a Dolores Duran e a Maysa. E coloca aí a Elizeth Cardoso. Ela escreva poesias num caderno velho, mas as coisas mais bonitas e lindas que ela já escreveu são:

bolinho de chuva
chorinho no telefone, de saudade
café preto bem quentinho, passado na hora no coador
uniforme da escola esquentado no forno de debaixo da coberta
colcha de retalhos de pijamas de bonecos de neve, navios e corujas
vestido de noiva cousturado de cortina de banheiro
avestruz com penas de peru que ela fez pra um trabalho do colégio

Na condição de uma mulher do século XXI, conhece a arte de fazer bolinhas saltarem bem longe apenas com a força da perereca cabeluda, mas não acho que ela realmente tente isso. É melhor nem pensar nisso, porque mãe da gente só tem três coisas da anatomia humana:

mão macia
colo quente
e coração valente (só pra rimar).

Agora chega de escrever porque este livro é de presente pra ela e eu já ocupei muitas páginas.

Um beijo e um abraço apertado da
Ioney
(maio/2004)

Eu escrevi essa dedicatória num caderno que dei pra minha mãe quando ela teve que ficar um tempão no hospital. Pra passar o tempo ela escrevia poeminhas — e ainda escreve. Os poemas que ela escreveu, minha tia Emi, que faleceu há pouco tempo, ajudou a compilar pra publicar num pequeno livrinho que se chama “Meus Guardados”*.

Um poeminha da minha mãe, que ela dedicou pra mim no meu aniversário de 2004:

Cantiga de ninar
(cantar devagarinho)

Volte, volte, meu menino
Deite no meu colo, venha a ser feliz
Volte, volte, meu menino
Venha brincar, venha cantar
Só assim vai ser feliz
Volte, volte, meu menino
Deixe a tristeza
Só assim vai ser feliz
Cante, cante, meu menino
Só assim vai ser feliz
Feche os olhos, feche os olhos, meu menino
Venha ser feliz
Feche os olhos, feche os olhos, meu menino
Venha ser feliz

(nome completo da minha mãe)

*Acho que a moça revisora “reviu” o que eu escrevi, porque ela colocou uns parágrafos onde eu não colocaria, acentuou palavras que nem o nariz dela e cortou pedaços de texto. Eu copiei a dedicatória diretamente do livrinho, de modo que tentei reconstitui-la do jeito que eu acho que ela era.

De volta. Sentiu muito minha falta?

24 mar
Enquanto estive longe, adquiri um caderno, espiral, de quase 100 folhas. Muitas delas já foram arrancadas porque o escrever e reescrever exige que se destaquem muitas folhas. Pelo Rio, deixei cartas, bilhetes, anotei endereços e escrevi histórias. Essas são mais minhas que todas as outras.
Novamente, do caderno:
Assim que se despediu das comissárias que simpaticamente lhe desejavam boa tarde e tendo ela também lhes desejado o mesmo, assim que pousou os pés sobre o asfalto quente e sentiu o cheiro trazido abraçado no vento, que não era o da sua cidade — nem vento, nem cheiro –, assim que chegou: ela soube que não tinha nunca partido. Ou ainda que tinha partido, mas que ao descansar os pés sobre o solo, ela tinha chegado a um destino que não correspondia àquele que vinha impresso no cartão de embarque. Teria chegado, se se verificasse a hipótese de realmente ter partido, aonde era ainda mais longe — e o longe, embora ela o ignorasse, não se separava dela tão fácil como se supunha.
O longe, ainda que ela não o pudesse enxergar, ela o trazia oculto dentro das casas dos botões das roupas que vestia, no fundo dos sapatos, no perfume delicadamente borrifado atrás das orelhas, entre os cabelos desalinhados. O longe estava de fato tão próximo, que logo todos saberiam, sem esforço, que ao contrário do que ela insistia em pensar, ela era ela todo o tempo. Ela era irremediavelmente ela, isso notariam, embora ela insistisse na idéia de que era ainda mais quando não a podiam ver nem ouvir.
O longe, ela o trazia sempre consigo e não se dava conta disso. O longe a que ela deveria chegar, ele estava também na espuma branca do sabonete que crescia sob a água; quando dormia, estava sob o travesseiro — e nos sonhos de que não se lembrava; estava debaixo do braço, dobrado como se fosse o jornal do dia. Ainda assim, era-lhe tão fugidio que impunha uma sempre renovada viagem.
O longe era o perto que ela temia enfrentar, era o perto inexplicável que tanto mais se aproximava quanto mais nele se pensasse, quanto mais o cultivasse, assim como se cultiva o silêncio em pequenos vasos ou nas floreiras sob as janelas que se abrem de par em par. Como o silêncio, só precisava o seu perto de um pouco de rega pela tarde, de luz indireta para não arruinar as folhas, um pouco de música ao despertar e de conversa de planta, falada por jardineiro. Era assim que o seu perto vicejaria como erva de mato. Foi assim que, mesmo que soubesse ser o silêncio — e o seu perto — tão somente seu, ela desejou que houvesse alguém que lhe sussurrasse ao ouvido o que o perto e o silêncio desejassem ouvir. Assim, embora intuisse que para chegar ao longe — tão perto — só poderia chegar por um caminho que somente ela poderia eleger, ela quis que houvesse alguém que lhe pudesse dar a mão e apertá-la forte e soprar-lhe o joelho quando ela se ferisse levemente, ao tropeçar.
Ela desejou somente que houvesse alguém que conversasse com o seu silêncio. E talvez ele estivesse tão perto.
Rio, março/2003
30 jan

História nova. Embora ela não me satisfaça plenamente, não consigo deixar nada empoeirando na gaveta para envelhecer e amadurecer. Dizem que envelhecer traz sabedoria. Talvez um dia eu pare para pensar sobre ela e altere tudo.

Terzo movimento

O fio azul chegado a seu destino, as continhas em fila, igual criança na escola, uma fila meninada, piuí, abacaxi, ela imaginava, ela apreciava a ordem, uma conta atrás da outra, no fim de tudo, um pequenino nó para que não se desprendessem as mãozinhas e as contas e permanecessem juntas. Para que não se desprendessem, mas elas sempre se soltavam, afinal, e só restava uma tal desorganização, eram meninos correndo para todos os lados. Um passo de dança um pouco mais largo, um passo de dança tiquinho fora do tom, um arrebatamento qualquer, discreto, mais ainda um arrebatamento, causado por um allegretto, uma nota ligeiramente mais deselegante e o fino fio de seda azul cedeu, espalhando pelo chão as continhas do colar, que ela mesma tinha enfileirado com uma agulha muito pontuda e ardida, o fio azul indo e vindo, indo e vindo, ela gostava de ver o fio entrando por um lado da conta e saindo pelo outro, era sempre uma surpresa que ele conseguisse sair do outro lado, como se tivesse dado um longo mergulho e aparecido à tona para tomar fôlego, ela queria ela mesma repirar fundo agora, entre soluço e outro, cada vez ela ia mais para o fundo da tristeza em que se achava mergulhada. Ardida a pontinha da agulha no dedo, ai, tinha doído um pouco, um pouquinho só, não vá chorar por causa disso, não precisa chorar mais. Queria que ele estivesse ali para segurar firme sua mão e dizer: não chore, e passasse mercúrio cromo e depois lhe soprasse consolos pela boca, soprasse sua presença de volta, um conforto, mas ele tinha se soprado para tão longe, partido amor fugidio que com brisa se perde, brumoso, nunca se espera que brisa sopre no mesmo lugar. Ardia a pontinha da agulha.

Ela tirou a agulha da superfície do disco porque a sinfonia que ouvia agora lhe causava enfado e ela estava mesmo cansada do seu ballet solitário, os instrumentos parecia que tivessem perdido a harmonia, eles a faziam sair flagrantemente do tom. Eram os movimentos preferidos dele, o terceiro da sinfonia e o arabasque que ela ensaiava e costumava repetir, lembrando sapatilhas de ponta, lembrando plié, grand plié. Era mesmo uma pena porque a sinfonia era linda. Linda, ela enchia tudo, toda a casa, ela, eram lufadas de graça, como ele um dia tinha ventado alegrias, como ele tinha levantado a saia dela e se metido ali embaixo, igual cena de Hollyood, ela tinha pensado que pudesse prender rajadas do vento dentro de casa, como se aprisiona um vagalume num pequeno vidro, para vigiar bem, ela gostava de vigiar vagalumes e as frutas nas árvores e na fruteira madurando, sem pressa, e a cortina enfunando igual velas bem brancas. Agora, ficava embotada e feia a sinfonia, ela só conseguia ensaiar reverences. Reverence, ela agradecia ao fim do ballet, dançava o último passo, dançava despedidas, não vá chorar, como era difícil recomeçar. O colar desfeito, o fio azul que se partira caía dançando piruetas até o chão, quase não se ouvia o chovidinho das contas se esparramando sobre as tábuas escuras, elas não eram de vidro, como uma impressão primeira fazia supor: uma luz que se esgueirava resvalava nas continhas, contando segredos de luzes e fazia nascerem brilhinhos briluzes, eram vidrilhos de romã.

Ela se agachou sobre os joelhos, bem miúda, com um gesto ligeiro prendeu o cabelo por de trás da orelha, para que ela pudesse enxergar melhor o chão, e colheu as pedrinhas de romã, como quem apanha frutas no pé, a saia branca improvisando um cesto, os dedos delicados, com firmeza nos braços ela se colhia. O fio azul de seda que se partia, ela olhava o fio debruçado sobre o chão, ela se fiava na passagem das estações. Depois que se cansasse do brinquedo, ela poderia engolir as sementes e esperar que um dia brotasse de dentro dela um pé de fruta e na primavera, as flores vermelhas e bravas iam lhe sair pelo nariz e pelos ouvidos e ela ficaria surda durante toda a estação e quando andasse, atrás de si ela deixaria um caminho de florezinhas bem rubras que qualquer vento bobo levantasse e o caminho estaria perdido. Toda vez que tentasse respirar, ela espirraria, e o nariz viveria coçando por dentro, até que chegasse o verão e nascessem-lhe romãs. Ela abriria a boca e lhe saíriam romãs bem maduras, as crianças a seguiriam pela rua e ela lhes entregaria frutas como se fossem oferendas, e ela ficaria conhecida como a moça mágica de cuja boca saem frutos, a moça mágica que chove flores na primavera, aquela moça dos cabelos compridos que brinca de roda com as crianças, as mãos dadas, bem apertadas. Confundiriam-lhe os seios com romãs, acabariam por morder-lhe, e a fruta se abriria revelando-se o interior que ela até então guardava e vigiava até que a fruta amadurecesse e finalmente se rompesse, ela se veria esparramada pelo chão, tantas-tantas-tantas continhas esparramadas. Não vá chorar, é assim, um vento que sopra leste, um dia parte para oeste, é melhor que plante num algodão uma-duas sementinhas e regue com um fio de água, e puxe uma cadeira gostosa como se fosse um colo quentinho e vigie a janela e o tempo, até que as sementes rompam o algodão para tomar fôlego, até se ver brotar.

* * *

Eu, que já gosto de romãs, passei a pensar mais ainda nelas por causa do que li em Belo Horizonte.

31 out

Parágrafo

Cortes de cabelo aqui no Menina e lá no primeiro parágrafo.

A frase em negrito foi enviada por Natygirl

No banheiro. Espelhinho pequeno esse, tesourinha cega essa. Pensou em atacar a si mesma então. E começou pelos cabelos. Não era propriamente um ataque. Lembrou da música do Alceu Valença, desejo mesmo de mudar. Melhor parar o ataque por ali. Ela podia se tornar um daqueles hindus malucos que colocam anzóis nas costas pra provar que têm fé. No caso dela, fé era o que estava faltando. Transferência, um pouco mais de dinheiro. Belo Horizonte não era onde ela queria chegar. Ela segurou forte a passagem que ele lhe tinha colocado nas mãos, ainda em Congonhas. E do beijo rápido, do chão de tabuleiro do aeroporto. Quis amassar, pôr fora, já cheguei até aqui, não foi? Lembrou das mãos dele, de quando elas lhe tinham feito café bem quente e preto. Apertado de leve o seu ombro. Imaginou-as em luvas quentinhas, encolhidas dentro dos bolsos do casaco, no aeroporto. Mas principalmente lembrou-se delas apertando as suas, dentro do carro, recomendando que não ficasse triste. Pronto, cheguei, cheguei. Não foi tão ruim. Não foi tão ruim? Chega até a ser um pouco bom. Muito sol, pouco calor, um pouco de vento. Era importante ter um pouco de vento. Que falta de coragem que nada, ela lembrou mais uma vez das mãos dele e agora elas estavam sobre as costas dela, bem abertas, para empurrá-la com força: vai. Vai! E ela jogaria as pernas bem pro alto, impulso para voar alto no balanço que fica na mangueira mais alta do quintal da casa que um dia eles terão quando ela chegar de volta em São Paulo, para as mãos que estão atrás do balanço, lá embaixo, esperando.

Filme

16 set

Desculpa: às vezes eu faço isso. Escrevo um email, acabo achando tão divertido, repito aqui. Eu sou uma pessoa má por causa disso? Má, eu não diria, mas com pouca imaginação. Note to self: escrever emails, mesmo que para ninguém.

Seria assim, no filme: ela abre os olhos, retirando a máscara porque a incomodava o súbito ruído de manhã. Porcaria de manhã. Afasta o lençol com estampa de flores, que ela dizia combinar com o seu temperamento primaveril e com o cheiro de flor de laranjeira que borrifava no travesseiro de penas de ganso para fazê-la dormir mais tranqüila. E diziam que podia trazer sonhos bons. Mas ela não se lembrava de nenhum, nunca se lembrou.

Levanta-se, já um tanto aborrecida, porque ela não nasceu para trabalhar. Nasceu para pilequinhos de vinho, que porres só os desclassificados tomam, para a moda, o rímel, os rouges, os saltos dez, para dar gorjetas que fariam garçons sorrirem, prevendo noites em boites na Augusta como nunca poderiam nem ter sonhado, para não ler livros e dar risadinhas pudicas, nunca em tom alto, jogando a cabeça para trás, olhando novamente para o interlocutor, subitamente parando de rir para readquirir o tom de seriedade que lhe impunha a educação vitoriana recebida desde o ventre — ela diria berço, mas desde o ventre materno lhe pareceu mais afirmativo –, o trejeito com a cabeça lhe despenteava levemente os cabelos longos durante o riso discreto para quem lhe viesse contar sobre romances eróticos e o pouco valor que se insiste dar a essa literatura, e depois da pequena descompostura, passar os dedos sobre os lábios como ela pensava ser insinuante, borrando o batom um pouco, que lhe dava um ar, ela pensava, de bonequinha de luxo, ainda que não tivesse um gato, que lhe parecia cair bem. Para colecionar cartões-postais que mandava para si mesma, de Paris, Estocolmo, Praga. Para fazer limpezas nos guarda-roupas a cada mudança de estação e mandar alguém entregar numa instituição de caridade e se sentir bem por isso, como sou solidária, as boas obras, essa bondade incorrigível.

Boceja, mas com classe, veste delicadamente seu pegnoir que esvoaça lindamente, e faz oscilar de leve a barra de fonfons bons de passar as mãos, os dedos, mas sente as pernas lhe tremerem subitamente, uma pontada no estômago, uma pontadinha só, apóia a mão sobre o criado-mudo, procurando equilibrar-se nos chinelinhos cor-de-rosa, ela pensa: “estou fraquinha, estou zonza” e pergunta, dessa vez alto:

“Minhas vitaminas, onde estão minhas vitaminas?”

No filme, ela perguntaria pelos sais. Mas eu nunca nem vi como são sais, então eu faço pedir pelas vitaminas.

Mas quem sou eu sem as minhas vitaminas? Lembrar, sempre, de levar as vitaminas para casa, no fim-de-semana. Mesmo que eu não use pegnoir transparente esvoaçante bom de passar os dedos.

19 abr

Se ele chegasse antes dela em casa, corria para preparar uma caipirinha de limão, porque tinha sido essa a bebida que ela pedira no primeiro encontro dos dois. Na verdade, ela tinha precisado tomar alguma coisa pra criar coragem, se devagar se ia ao longe, ela já não entendia como é que esse maldito longe não tinha chegado. E como não costumasse beber, depois de dois golinhos, já estava mais à vontade. Ainda assim, tudo o que pôde dizer foi: “Eu gosto de você”.

Não foi um “gosto de você” daqueles que se diz quando se é criança pro namorado, as meninas reunidas em roda, especulando quem gostava de quem, as meninas ruborizadas diante da idéia de haver um menino que gostasse delas. Foi menos contundente, embora ela pretendesse que fosse. Sorte dela foi que ele tivesse reparado em como era charmoso o modo pelo qual ela trocava as pernas e as palavras e as intenções, e tivesse resolvido roubar um beijo, um beijo afoito, um quase não beijo, como fazia quando era menino e as meninas depois passavam as mãos na boca, com força, colocavam a língua pra fora e ficavam morrendo de nojo, resmungando “seu bruto”, desejando que o mundo fosse habitado só por mulheres e corressem pra andar de mãos dadas com a melhor amiga, contando pra elas como desejariam não crescer nunca. Funcionou. O “eu gosto de você” combinou perfeitamente com o roubo do beijo.

Mas o fato era que ela não gostava de caipirinha, nem de limão, nem de qualquer outra fruta, de pinga ou vodka. Ela só tinha tomado para que a confissão fosse possível, mesmo sem ter sido ensaiada e repetida à exaustão como era de se esperar quando se revela que se gosta de alguém. Foram dois goles decisivos, ainda que não tivessem surtido o efeito esperado, ou seja, o arrebatamento total dele, que o fizesse se levantar e puxá-la com força, para que ela não pudesse reagir de maneira nenhuma e puxasse os cabelos dela para que então ela recebesse aquele beijo dado sem nenhuma pressa e com muito medo. Foi naquele momento da noite que ela percebeu que devia parar de ler as revistas Júlia que emprestava de uma tia solteira, embora negasse até a morte gostar de lê-las e resolveu se dedicar a leitura mais nobres, talvez Paulo Coelho.

Ela não gostava de caipirinha, mas não se importava, tomava tudo como se gostasse, chegava mesmo a gostar, porque ele gostava que ela gostasse tanto. Ela também não gostava de blues e de jazz, nem de samba raiz, não gostava de polenta com molho, nem de azul em todos os tons como tinha dito, quando viu a camisa preferida dele, obviamente azul, nem nunca tinha nem visto a capa de um livro do Camus antes dele (e aquele que ficava na cabeceira tinha sido colocado ali estrategicamente para o dia em que ele finalmente entrasse no seu quarto, embora ele não tivesse reparado imediatamente, porque estava com os olhos fechados e folheando outras páginas que naquele momento achava mais interessante, mas quando ele notou que ela tinha o livro, não tinha deixado de pensar, embora não tivesse dito, como seria bom se ela combinasse tanto com ele).

Nunca tinha ido pra Itália fazer um curso de chef de cozinha e conhecido um tal de Marco, com quem, a despeito da timidez dela, tivera um caso de amor ensandecido e que tinha sido sua grande primeira decepção. Não sabia falar tantas línguas, não chegava nem mesmo a ler em espanhol e penava pra entender os filmes falados em inglês, sem legenda, que ele a levava pra ver na mostra de cinema. Detestava filmes europeus, gostava mesmo era do Van Damme. Os pais dela não eram separados desde a infância, ao contrário, eram um casalzinho doce que tinha dedicado a vida aos filhos e agora fazia cruzeiros para Buenos Aires todos os anos e que se embolava atrapalhadamente quando tentava dançar tango no navio. Ela não gostava de futebol como sempre dizia, nem gostava de ir ao estádio com ele, quando ele insistia. Nem torcia pro São Paulo, não torcia pra Seleção. Não achava o Romário o melhor jogador do mundo e o Gerson, pra ela, era só o homem que tinha inventado aquela lei. Doce de abóbora com queijo não era doce mais gostoso que ela tinha provado e avó dela nunca tinha tido um tacho de cobre no quintal, onde ela preparava compotas de goiaba que deixavam a casa cheirosa de canela. Pensando bem, ela talvez não tivesse contado sequer uma história que fosse verdade.

Eventualmente, ele descobriu tudo. E gostou dela mais ainda: “Ela tem tanta imaginação”, ele dizia para os amigos.